Por ANTÓNIO BARRETO
Público, Segunda-feira, 06 de Setembro de 2004
Não pretendo rebater, um a um, todos os argumentos tradicionais da esquerda, entretanto adoptados pelo centro e por grande parte da direita. Mas é possível ver o destino reservado a tantos desejos e a tantas certezas políticas. Por exemplo, os países que mais esforçadamente investiram recursos públicos na educação, quase todos os socialistas de Leste, assim como Cuba, são excelentes exemplos de como a educação não provoca, por si, o desenvolvimento. Naqueles países, as taxas de alfabetização, de cumprimento da escolaridade, de formação técnica e superior, são quase sem igual no mundo. No entanto, o desenvolvimento económico, tecnológico e cultural desses países ficou muito aquém do verificado nos países capitalistas com que se podem comparar. Naqueles países, aliás, também o desenvolvimento cultural e a liberdade individual ficaram muito longe do crescimento da educação. Noutras palavras, a educação, por si só, não cria cultura nem liberdade. Nem é motor de desenvolvimento.
Quanto à igualdade social, que viria a reboque do desenvolvimento da educação, todos os elementos acessíveis e grande parte dos estudos conhecidos, mostram que também esta não resulta necessariamente da expansão do sistema escolar. Nas últimas duas ou três décadas, três países, em situações bem diferentes, Portugal, a Grã-bretanha e os Estados Unidos, têm visto aumentar consideravelmente as desigualdades sociais, isto em simultâneo com uma expansão permanente do sistema educativo, com o aumento das percentagens de cada grupo etário nos respectivos níveis de ensino secundário e superior e com uma ampla e quase ilimitada “democratização” do ensino superior.
O caso português é particularmente interessante. Com efeito, a expansão rápida da educação básica e secundária pode ser datada: início em finais de 1960 (com Marcelo Caetano e Veiga Simão), acelerada depois da revolução de 1974 e da fundação do Estado democrático. E o enorme alargamento do ensino superior (politécnico e universitário, público e privado) tem uma primeira fase nos anos setenta e uma segunda, mais acelerada, em meados dos anos oitenta. Se compararmos essa evolução com a das desigualdades, obtemos resultados interessantes. Os coeficientes de desigualdade aplicados aos rendimentos das famílias, os dados disponíveis sobre os escalões de rendimento detectados para fins fiscais, os elementos indirectos conhecidos relativos ao salário mínimo e aos rendimentos mínimo garantido e de inserção, revelam que as desigualdades têm conhecido um nítido progresso. Ora, este aumento de desigualdades é contemporâneo do maior desenvolvimento educativo da história de Portugal. É mesmo possível, ou provável, segundo alguns, que o crescimento da educação em todos os seus aspectos tenha, entre outros resultados, o de aumentar as desigualdades.
Muitas outras realidades são hoje suficientemente conhecidas e deveriam já ter proporcionado uma séria reflexão, tanto das esquerdas como de todas as outras orientações de políticas educativas. O acesso indiscriminado, independente do mérito, ao ensino superior, é seguramente uma das causas do desperdício público (e familiar) que representa uma taxa de abandono de 50 por cento do total de matrículas. O que actualmente denota mais fortemente a desigualdade social não são as diferenças no acesso aos estudos, mas sim o abandono. O crescente desemprego de diplomados pelas universidades revela uma razoável desadequação da formação à vida económica. A eliminação das diferenças curriculares nos níveis escolares ulteriores aos primeiros nove anos de escolaridade, feita em nome da igualdade social, não criou, ao que se sabe, nenhuma dinâmica nova de igualdade de oportunidades. O clima de facilidade e o ambiente de aprendizagem lúdica não têm aumentado os conhecimentos dos jovens das classes populares, nem das médias, e talvez tenham alguma responsabilidade (difícil de medir) nos resultados nacionais em matemática, português e física, dos piores do mundo.
Finalmente, a desigualdade social tem-se vindo a manifestar de modo marcado com o desenvolvimento das escolas básicas e secundárias privadas. Não parece que estas recrutem melhores professores, que devem ser, em qualidade e competência, semelhantes aos seus colegas do ensino público. Acontece que a escola oficial se tem geralmente degradado, enquanto a particular tem mantido melhor organização, mais eficiente gestão e um superior clima de disciplina. A “ideologia educativa” em vigor é a grande responsável pela desorganização da escola pública e contribuiu assim, ao fomentar a procura do ensino privado pelas classes médias, para o aumento da desigualdade. Não sendo imaginável que um governo queira, nem num futuro longínquo, proibir a escola privada, esta desigualdade só será travada com um colossal esforço de organização e de disciplina no ensino público. O que não parece estar em vias de acontecer.
É verdade que, até meados ou finais dos anos setenta, o orçamento público para a educação (em percentagem do produto nacional) era, em Portugal, absurdamente reduzido e insuficiente. Depois, começou a subir de modo regular, até atingir níveis significativos, superiores a muitos países europeus. Há quase vinte anos que o sector é de facto a prioridade social do país e dos governos. Ora, os progressos reais na educação, nas taxas de aproveitamento, nos níveis de conhecimento, nos graus de formação científica, cultural e profissional, não parecem ser proporcionais a tão relevante aumento da despesa nacional pública (paralelo, aliás, ao aumento da despesa privada das famílias também com a educação). Estas são correlações difíceis de fazer, mas os indicadores conhecidos (analfabetismo funcional, preparação técnica da força de trabalho, duração média das licenciaturas e taxas de abandono antes do fim da escolaridade obrigatória, mas também no secundário e no superior, etc.) assim como os maus resultados, em termos internacionais, obtidos pelos alunos portugueses, sugerem que a melhoria da educação está muito aquém dos aumentos dos orçamentos.
Deve também reconhecer-se que o fracasso da educação como “niveladora social” ou “libertadora” não é absoluto, no sentido que a escolaridade obrigatória universal e a cobertura escolar do país trouxeram reais benefícios a uma população que poucos ou nenhuns contactos tinha com a cultura ou tão só com os instrumentos básicos da instrução: ler, escrever e contar. Como é verdade que muitos jovens terão assim conseguido uma ferramenta de mobilidade (social, profissional, regional), o que lhes era impossível sem escola. Mas esses factos, cujos efeitos devem ser analisados em paralelo com a urbanização, o turismo, a emigração, a indústria, a economia e a empresa, estão muito aquém dos ideais explícitos das “ideologias educativas”.
As ideologias políticas mudam muito dificilmente. Os governos raramente reconhecem os seus erros. Os partidos mudam, por vezes, mas sem confessar que erraram ou que as suas políticas não deram resultados ou foram desajustadas. Mas, se olharmos com atenção, apesar dos efeitos de ocultação, muito tem mudado. Por convicção ou resignação, uma boa parte da direita já é democrática. De igual modo, quase toda a esquerda deixou de acreditar nos mitos do Estado. Em Portugal, ambas, direita e esquerda, começam a pensar que os direitos individuais têm valor e significado e que a reserva da vida pessoal e privada, assim como os respectivos direitos, devem ser preservados e garantidos. Apesar da demora e dos atrasos, há progressos na mudança de ideologias e programas. Sem que tal signifique que direita e esquerda se aproximem, o que seria desastroso. Ou antes, sem que tal sempre se verifique, dado que, por vezes, a promiscuidade entre uma e outra é excessiva. Há, todavia, uma matéria em que a mudança e o progresso são quase impossíveis: a educação, a sua ideologia e as suas políticas. Apesar de haver, à esquerda como à direita, manifestações autónomas e procura de novas vias, a ideologia central, hegemónica, omnipresente, continua vigorosa e viva. A esquerda não reconhece que se enganou e que as suas políticas não deram os resultados esperados. A direita não reconhece que se deixou colonizar pela esquerda e que, entre esse modelo e a caverna reaccionária, não tem qualquer solução própria.
E, no entanto, há lugar para novas políticas. Desde que as orientações se tornem independentes dos dois mais poderosos factores de conservação desta famigerada ideologia: a burocracia ministerial (e seus técnicos e especialistas) e os sindicatos de professores. São estes dois corpos os verdadeiros responsáveis pela política educativa em Portugal, ajudados evidentemente pela demagogia dos dois grandes partidos.