Psiquiatra Pedro Afonso defende que Portugal devia copiar o direito dos trabalhadores a ignorarem os pedidos das chefias fora do horário de trabalho: em 2015, o burnout já chegava a 17% dos trabalhadores.
6 de Janeiro de 2017, 6:32
As novas tecnologias criaram um novo tipo de esclavagismo entre os trabalhadores, cuja vida está cada vez mais contaminada pelo trabalho que lhes invade a casa, os fins-de-semana e as férias, via telemóvel ou correio electrónico. Quem o afirma é o psiquiatra Pedro Afonso, por cujo consultório diz passarem “cada vez mais pessoas sem qualquer antecedente psiquiátrico que entram em depressão por causa da pressão laboral associada ao excesso de carga horária e a esta disponibilidade permanente”.
“Num estudo que fizemos em 2016 junto de um universo de 400 antigos alunos da escola de negócios [AESE Business School], concluímos que 53% trabalhavam em média 53 horas semanais. E 11% só conseguiam manter a sua actividade laboral porque estavam a fazer uso de psicofármacos, designadamente antidepressivos e ansiolíticos”, descreve o psiquiatra. Autor de um estudo sobre o impacto do excesso da carga horária laboral na saúde psíquica e familiar, Pedro Afonso aponta sintomas depressivos, ansiedade e perturbações do sono como consequências da pressão a que os trabalhadores são sujeitos.
“As novas tecnologias levaram a que o trabalho começasse a invadir a esfera pessoal e fizeram com que, ao trabalho cumprido presencialmente, se some um outro trabalho que não é contabilizado nem remunerado. As pessoas sentem-se sequestradas pela pressão laboral”, diagnostica, para avisar que é uma questão de tempo até que surjam problemas maiores: “os relacionados com a saúde física e psíquica e com o recurso aos psicofármacos mas também com conflitos conjugais graves e divórcios”.
O estudo da AESE abrangeu sobretudo gestores e outros cargos de chefia. Mas o burnout, que se caracteriza por elevados níveis de exaustão emocional, despersonalização ou perda de realização profissional, estende-se igualmente à classe médica: um estudo divulgado em Novembro, e feito a partir de um inquérito dirigido a mais de 40 mil médicos, concluía que dois em cada três apresentavam níveis de exaustão. E que a “epidemia” está espalhada por quase todas as profissões confirmava-o outro estudo que, em Janeiro de 2016, sustentava que os sintomas de esgotamento atingiam já 17,3% dos 5000 trabalhadores inquiridos pela Associação Portuguesa de Psicologia da Saúde Ocupacional. Mais: 48% estavam “submetidos a situações com elevado potencial de desenvolver burnout”.
“Isto está a tornar-se num estilo de vida que é completamente contrário ao bem-estar e à saúde das pessoas”, denuncia Pedro Afonso, contra a cultura instalada que leva a ficar mal visto o funcionário que se proponha cumprir o seu horário de trabalho. “É visto pelos seus pares e pelas chefias – é uma coacção colectiva – como alguém que não veste a camisola”. Para mostrar que a cultura do “presentismo” não é extensível a todos os países, Pedro Afonso aponta o caso de vários doentes que trabalham em multinacionais e que “quando foram deslocados para outros países e se propuseram continuar a trabalhar depois do horário, começaram a ser censurados, porque lá isso é visto como um comportamento anómalo”.
“Fala-se muito do trabalho escravo nos países em vias de desenvolvimento mas este é também um novo tipo de esclavagismo”, conclui, defendendo que Portugal deveria, à semelhança de Espanha, transpor as novas regras francesas.
Em Portugal não há notícias de suicídios directamente imputáveis ao desgaste profissional, embora Pedro Afonso garanta que existam, “nomeadamente entre os elementos da PSP”. Mas mesmo os ocorridos em países como o Japão e a França não são justificação para se avançar com medidas deste tipo, na opinião de Miguel Pina Martins, da Science4You, uma empresa que produz e comercializa brinquedos educativos para crianças, e que passou dos 1,4 milhões de vendas em 2012 para os 11,3 milhões de 2015. “Os suicídios podem ser atribuídos ao trabalho como há pessoas que se suicidam porque tiveram um desgosto amoroso. E não é por isso que nós vamos proibir o amor. Provavelmente, as pessoas que se suicidaram tinham um determinado perfil”, começa por relativizar.
À frente de uma empresa que emprega entre 350 a 400 funcionários em permanência, mas que nos picos de venda chega a ter mais de 750, Pina Martins diz que “há uma minoria de trabalhadores que têm isenção de horário e que não estão 24 horas por dia on mas se calhar estão dez ou onze”. Mas estes são trabalhadores e, em simultâneo, accionistas. “E neste sentido a responsabilidade que sentem é maior”, descreve, para concluir que, pela realidade que conhece de Espanha e Portugal, “o melhor seria deixar que sejam as empresas a encontrar o equilíbrio entre os interesses dos accionistas e a felicidade dos trabalhadores”.