A publicação do Decreto-Lei n.º 152/2013, que consagrou um novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo de nível não superior, alterou significativamente um regime jurídico com mais de três décadas, desde logo porque a enunciação contida no seu artigo 5.º incluiu nas atribuições do Estado “apoiar o acesso das famílias às escolas particulares e cooperativas no âmbito da livre escolha”.
http://www.educare.pt/opiniao/artigo/ver/?id=26802&langid=1
O mês de maio trouxe notícias importantes para os professores contratados e candidatos à docência. À vinculação extraordinária de professores para o ensino artístico, juntou-se a publicação do Decreto-Lei n.º 83-A/2014, que consagra o acesso semiautomático aos mapas de pessoal dos professores contratados que completem cinco anos letivos ou quatro renovações com horário anual e completo, e a fixação, através da Portaria n.º 113-A/2014, de 1954 vagas para quadros de zona pedagógica, a preencher no âmbito do concurso externo extraordinário para pessoal docente regulado pelo Decreto-Lei n.º 60/2014.
Longe de resolver um problema que se arrasta há anos – a última estatística oficial conhecida, reportando-se ao ano letivo de 2011/2012, contabilizou 28 730 professores contratados, correspondendo a 22% do pessoal docente ao serviço na rede escolar do Ministério da Educação, infantários públicos incluídos – não deixa de ser um conjunto de medidas positivas, especialmente o regime de acesso semiautomático dos docentes contratados com mais tempo de serviço que, a concretizar-se, será um instrumento muito importante para eliminar gradualmente uma das grandes injustiças do sistema educativo público: o tratamento discriminatório dos professores contratados pelo seu empregador, o Estado português, que já mereceu a censura da Comissão Europeia e dos tribunais nacionais (e a que nos referimos em artigo anterior).
Malgrado a desilusão de alguns setores que esperavam – legitimamente – uma resolução rápida e definitiva deste problema, é de assinalar que o sistema público de ensino vai dando passos seguros no sentido da estabilização. Longe vão os tempos da anunciada “implosão” do Ministério da Educação…
Obviamente permanecem em aberto questões sensíveis (para quando uma revisão de fundo do regime legal, robustecendo-as, das escolas portuguesas nos países da CPLP e da rede do ensino do Português no estrangeiro, tão caras à cada vez mais numerosa diáspora portuguesa?), o que é natural num sistema público tão permeável às mudanças socioeconómicas do país e que não pode deixar de ser gerido com uma razoável dose de pragmatismo. Por esse motivo, é um tanto surpreendente o regresso episódico, mas persistente, de vozes que defendem modelos de gestão da oferta escolar fundados no modelo do cheque ensino, nas suas diferentes variáveis, e a adoção de medidas legislativas que concretizam esses propósitos, porque estão por demonstrar os méritos e os custos dessa opção, nomeadamente o destino a dar, nesse contexto, à vasta rede escolar pública.
O “novo” Estatuto do Ensino Privado e Cooperativo
A publicação do Decreto-Lei n.º 152/2013, que consagrou um novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo de nível não superior, alterou significativamente um regime jurídico com mais de três décadas, desde logo porque a enunciação contida no seu artigo 5.º incluiu nas atribuições do Estado “apoiar o acesso das famílias às escolas particulares e cooperativas no âmbito da livre escolha”. Esta novidade, conjugada com a consagração de um “dever do Estado, no âmbito da política de apoio à família, instituir apoios financeiros destinados a custear as despesas com a educação dos filhos” (artigo 4.º), corresponde a uma alteração no paradigma do sistema de ensino privado e cooperativo de nível não superior em Portugal e a uma reinterpretação dos princípios constitucionalmente consagrados nesta matéria.
Basta atender à nova nomenclatura escolhida para as modalidades de contratos a celebrar entre o Estado e as escolas particulares, significativamente epigrafadas sob o título “contratos e apoio à família”, para se concluir que estamos perante uma mudança – por ora, circunscrita ao regime jurídico – na relação da rede pública de ensino com as escolas privadas e cooperativas. O que há de novo aqui é a modificação do carácter supletivo e complementar das escolas particulares quando suprimem carências da rede de escolas públicas, passando-se para um regime de coexistência concorrencial (a “tal” livre escolha), pelo menos na previsão do legislador, entre rede pública e rede privada que passa a aspirar, nos termos da lei, à obtenção de financiamento público para a prossecução da sua atividade.
A Constituição da República Portuguesa consagra, no seu artigo 75.º, o dever de o Estado criar “uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população” como corolário lógico da liberdade de aprender e ensinar (artigo 43.º) e do “direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar” para todos (artigo 74.º), que pressupõe um “direito à escola” na feliz formulação de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Poirtuguesa Anotada, Coimbra Edutora,2007, página 904).
O alcance da norma do artigo 75.º não parece oferecer grandes dúvidas à doutrina constitucional conhecida. Jorge Miranda e Rui Medeiros, por exemplo, interpretam esta disposição no sentido de que “mesmo que existam escolas particulares e cooperativas, em determinada área, o Estado não pode deixar de criar as suas próprias escolas” (idem, página 458).
Parece, assim, que o legislador constituinte foi muito claro nos seus propósitos: não se limitou à consagração do direito à escola, antes impôs a criação de uma rede de “estabelecimentos públicos”, expressão que, tanto na sua letra como no seu espírito, deixa escassa margem de interpretação. Estabelecimentos públicos são estabelecimentos públicos, não são estabelecimentos privados que cumpram funções públicas, concessões, parcerias, ou outra categoria híbrida que a imaginação da administração possa conceber.
Daqui não podemos concluir que haja uma proibição constitucional à consagração de um sistema público de subvenção do ensino privado tanto mais que, historicamente, esta norma constitucional não impediu a celebração de contratos com essa natureza, desde logo os contratos de associação que permitiram, num dado momento, recorrer à rede privada para suprir as carências da rede pública, permitindo o acesso universal e gratuito às populações desprovidas de escolas públicas e de contratos simples que se traduzem em apoios prestados diretamente às famílias, em certas circunstâncias.
Porém, este novo Estatuto marca uma diferença importante, inscrita no seu próprio preâmbulo, a assunção de que “não constitui prioridade do Estado a construção de equipamentos escolares onde exista oferta”, expressão que marca uma rutura com o artigo 75.º da Constituição, tal como ele tem sido interpretado até aqui, suscitando questões de constitucionalidade.
A lógica subjacente à criação de uma rede pública de estabelecimentos de ensino e da sua inscrição nos deveres constitucionais cometidos ao Estado encontra razões históricas tão longínquas como o combate ao analfabetismo (um fenómeno perene da sociedade portuguesa durante grande parte do século XX português), na não confessionalidade da escola pública e no défice de qualificações registado em sucessivas comparações estatísticas.
Estas características da escola pública, aliadas à sua submissão a regras de gestão de direito público, ao reconhecimento de um papel importante das associações de pais no dia a dia da escola, à participação de representantes da sociedade civil nos conselhos gerais dos agrupamentos e às garantias profissionais consignadas ao pessoal docente e não docente, conferem à rede pública de estabelecimentos de ensino um papel global na concretização do princípio da igualdade e sujeitam-na a um heterocontrolo que é uma sua marca distintiva.
Nesse sentido, as possibilidades criadas pelo novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo de nível não superior, nomeadamente a nova modelação dos contratos simples, agora ditos “de apoio à família”, modificam a natureza do serviço público de educação (relembrando a dicotomia, tão cara à sociologia, entre Estado-Providência e Sociedade-Providência) ao permitir uma atribuição extensiva dessa função à iniciativa privada, a qual poderá atuar com uma ampla margem de liberdade, desde logo porque se aprofundou a autonomia pedagógica e pôs-se fim ao paralelismo pedagógico que vigorou durante décadas.
Copagamentos no ensino obrigatório?
Naturalmente, este é um processo que está no seu início e será a sua concretização prática que irá fornecer os dados para uma análise mais criteriosa. Não obstante, uma das dimensões introduzidas no novo modelo de contratos simples de apoio à família suscita, por ora, uma perplexidade. Sendo o ensino universal obrigatório “gratuito” (artigo 74.º da Constituição), o Decreto-Lei n.º 152/2013 prevê, para os contratos simples, a diferenciação do valor do apoio financeiro “de acordo com a condição económica do agregado familiar”.
Esta regra, que carece da publicação de uma portaria para a sua implementação, e aproxima o modelo de financiamento do ensino dos acordos de cooperação celebrados entre o Estado e as Instituições Particulares de Solidariedade Social, bem conhecidas de muitas famílias que recorrem à rede social para assegurar a educação infantil e pré-escolar dos seus filhos, introduz, pela primeira vez, a noção de copagamentos num serviço público legalmente definido como de acesso “gratuito” e cria, em simultâneo, uma expectativa legítima por parte das famílias que optaram pelo ensino privado e suportam integralmente os custos inerentes a essa opção, a um financiamento público para a prossecução dos estudos dos seus educandos.
É bom de ver que um modelo de financiamento da escolaridade obrigatória apoiado nestes critérios será sempre polémico, porque corresponde a um novo paradigma de funcionamento do sistema público de ensino que, penso, não está preparado para lidar com uma “evolução” tão radical.