Um dos grandes expoentes do minimalismo musical, Steve Reich sempre cativou público de vários quadrantes: do pop rock à música erudita, passando pelo jazz e pelas músicas do mundo. Na sua linguagem não encontramos apenas expressões da música clássica ocidental, mas também estruturas, harmonias e ritmos da música africana e das culturas orientais ou influências do jazz. Não admira, pois, que estas referências encontrem eco em ouvintes muito diversificados e que a vanguarda musical mais radical dos anos 60 e 70 do século XX o tenha olhado com reservas. Mas a atitude é mútua. O compositor americano, 73 anos, também olha de soslaio essa vanguarda e os seus herdeiros. Para Reich o caminho aberto por Schoenberg foi “um erro” e Boulez é um compositor que ocupa um lugar restrito na vida musical actual.
A propósito do concerto em Lisboa dedicado à sua produção (dia 1, no CCB), Reich falou ao Ípsilon por telefone das suas referências e do seu ecletismo estético, defendendo a sua posição através de um olhar próprio sobre o passado. Integrado no Festival Temps d’Images, o concerto revisita algumas das mais importantes obras de Reich compostas entre os finais da década de 1960 e os anos 80 e tem como intérpretes o agrupamento Bang on a Can All Stars, conjunto híbrido, a meio caminho entre o ensemble de câmara e a banda rock, fundado em 1987 pelos compositores Michael Gordon, David Lang e Julia Wolfe.
Para Steve Reich, o “Sexteto” (1984), para percussões e teclados, é a peça principal de um programa que inclui páginas tão famosas como “Electric Counterpoint“, para guitarra eléctrica e fita magnética (dedicada ao guitarrista de jazz Pat Metheny), “Clapping Music” (1971) e “Music for Pieces of Wood” (1973). Destaca ainda “Piano Phase/Vídeo Phase, uma obra especial cuja primeira versão, para dois pianos, remonta a 1967. “Agora é apresentada com uma parte de vídeo feita pelo percussionista David Cossin. Ele não toca piano mas usa um vídeo pré-gravado onde executa uma das partes da peça num instrumento de percussão midi, com o qual interage em palco.”
Reich explorou a relação com o vídeo em várias obras, incluindo as óperas “The Cave” e “Three Tales”, em colaboração com Beryl Korot, mas actualmente a sua produção centra-se em criações estritamente instrumentais ou na exploração do texto e da voz. Da sua produção recente salienta o Duplo Sexteto (prémio Pulitzer em 2009) e “2×5”, para banda rock, estreada em Manchester em Julho de 2009 no mesmo concerto em que actuaram os Kraftwerk, a banda alemã criada que levou a electrónica ao grande público.
Música é música
A transversalidade entre a cultura musical popular e erudita sempre foi natural para Reich, que gosta de lembrar o carácter intemporal desta relação. “Se voltarmos atrás na história verificamos que quase todos os grandes compositores clássicos usaram fontes populares. Na Idade Média e no Renascimento, compositores como Dufay e Josquin Desprez recorreram à melodia de ‘L’homme armé’, uma canção muito popular na época, como a base para a composição de missas”, explica. “No barroco, Bach e tantos outros inspiraram-se em formas de dança [gavotte, sarabande, giga, etc.], Beethoven usou melodias populares na Sexta Sinfonia [canta] e Stravinsky recorreu a materiais da música folclórica russa na Sagração, em Petrouska ou o Pássaro de Fogo. Ele negou mas estava a mentir!”, exclama por entre uma gargalhada. “É impossível separar a vertente erudita de Bartók da música dos camponeses húngaros e veja-se o caso Kurt Weill e da música de cabaret ou a relação de Aaron Copland com o jazz”, refere. “A influência da cultura popular é comum a quase todos os músicos desde a Idade Média. Um dos que não fez essa escolha foi Schoenberg mas estava errado! Todos sabemos que a música popular não é música clássica. Usa instrumentos e técnicas diferentes e nem costuma usar notação, mas tal como Alban Berg disse uma vez a Gershwin: ‘Música é música!'” Sublinha que as várias músicas fazem parte do nosso mundo e podem aprender umas com as outras. “Muitos DJs hoje e pessoas da Dance Music vão buscar coisas à minha obra, às peças dos anos 60 e 70. Quer dizer que aprendem como ela da mesma forma que eu aprendo a ouvir Miles Davis e John Coltrane.”
Schoenberg foi um erro?, perguntamos com perplexidade. “Schoenberg era um grande compositor mas foi cego para uma parte da música. É certo que também teve influências da música de cabaret, como se vê no ‘Pierrot Lunaire‘, mas algo aconteceu depois. Se calhar não gostou do sucesso de Kurt Weill, quem sabe?” Ri-se. “Mas o pior é que os seus seguidores tornaram esse erro ainda maior”. Refere-se ao serialismo integral do pós-guerra, praticado por figuras como Boulez e por compositores ligados à escola de Darmstadt. “Boulez é um grande compositor e a sua música tem um lugar, mas é um lugar restrito. Não é algo que as pessoas toquem e ouçam regularmente. De quem é a música que mais se toca hoje? Creio que o maior compositor europeu vivo é Arvo Pärt. Também admiro muito Henryk Górecki e Giya Kanchelli e há aspectos do minimalismo na obra de Louis Andriessen, sobretudo nas primeiras peças. Depois temos John Taverner e Michael Nyman na Inglaterra e John Adams é hoje mais interpretado do que qualquer outro compositor vivo. No caso dos americanos temos ainda Philip Glass, eu próprio, Terry Reily…, todos muito presentes na vida musical. Por isso digo que o minimalismo foi a corrente mais importante dos últimos 50 anos.”