Educação à portuguesa

[Vilaça] Quis ouvir mais o menino, e pousando o seu talher:

– E diga-me, Carlinhos, já vai adiantado nos seus estudos?

O rapaz, sem o olhar, repoltreou-se, mergulhou as mãos pelos cós das flanelas e respondeu com um tom superior:

– Já faço ladear a “Brígida”.

Então o avô, sem se conter, largou a rir, caído para o espaldar da cadeira:

– Essa é boa! Eh! Eh! Já faz ladear a “Brígida”! É verdade, Vilaça, já a faz ladear…

(…)

O bom Vilaça, no entanto, dando estalinhos aos dedos, preparava uma observação. Não se podia decerto ter melhor prenda que montar a cavalo com as regras… Mas ele queria dizer se o Carlinhos já entrava com o seu Fedro, o seu Tito Liviozinho…

O abade (…) escolhendo no molho rico os bons pedaços de ave, ia murmurando:

– Deve-se começar pelo latinzinho, deve-se começar por lá… É a base: é a basezinha!

– Não! Latim mais tarde! – exclamou o Brown, com um gesto possante. – Prrimeirro forrça! Forrça! Músculo…

Afonso apoiava-o, gravemente.  O latim era um luxo de erudito…

(…)

[O Eusebiozinho] Ainda gatinhava e já a sua alegria era estar a um canto, sobre uma esteira, embrulhado num cobertor, folheando in-fólios, com o craniozinho calvo de sábio curvado sobre as letras garrafais da boa doutrina; e depois de crescidinho tinha tal propósito que permanecia horas imóvel numa cadeira, de perninhas bambas, esfuracando o nariz. (…)

O sr. Vilaça naturalmente não sabia, mas aquela educação do Carlinhos nunca fora aprovada pelos amigos da casa. Já a presença do Brown, um herético, um protestante, como preceptor na família dos Maias, causara desgosto em Resende.Sobretudo quando o sr. Afonso tinha aquele santo do abade Custódio, tão estimado, homem de tanto saber… Não ensinaria à criança habilidades de acrobata; mas havia de lhe dar uma educação de fidalgo, prepará-lo para fazer boa figura em Coimbra.

Nesse momento, o abade, suspeitando de uma corrente de ar, ergueu-se da mesa de jogo a fechar o reposteiro: então, como Afonso já não podia ouvir, D. Ana ergueu a sua voz:

– E olhe que o Custódio teve desgosto, sr. Vilaça. Que o Carlinhos, coitadinho, nem uma palavra sabe de doutrina…

(…)

Afonso da Maia, no entanto, recomeçara a falar do Silveirinha. Tinha três ou quatro meses mais que Carlos, mas estava enfezado, estiolado por uma educação à portuguesa: daquela idade ainda dormia no choco com as criadas, nunca o lavavam para o não constiparem, andava couraçado de rolos de flanelas! Passava os dias nas saias da titi a decorar versos, páginas inteiras do “Catecismo de Perseverança”. Ele por curiosidade abrira este livreco e vira lá “que o Sol é que anda em volta da Terra (como antes de Galileu), e que Nosso Senhor todas as manhãs dá as ordens ao Sol, para onde há-de ir e onde há-de parar, etc., etc.” E assim lhe estavam arranjando uma almazinha de bacharel…

Eça de Queiroz, “Os Maias

4 Comments

  1. que bom “acordar” com os Maias…;) e com as “teorias pedagógicas” mais bem descritas que em qualquer outro compêndio de “Pedagogice” actual….obrigado detritus, por recordares…

  2. :))))))

    Era deste que eu falava…

    Utilizei-o diversas vezes quando fiz formação de profs… mas creio que não convenci muita gente. A formação dualista do povo português ainda está muito arreigada. Continua a imperar o intelecto bacoco em detrimente da formação integral do índividuo. Basta ver a venda, a qualquer um, das “actividades não intelectuais” do 1º ciclo, transformadas apenas em ocupação dos alunos para resolver problemas aos papás, para se perceber o conceito que os nossos governantes têm da formação da criança/jovem.

  3. Estou a ler “Os Maias”, como já deves ter percebido. Sempre que encontrar estas pérolas, vou colocando aqui. Recomendo um clique nos compositores que vou deixando: acho que há coisas muito interessantes, embora só esteja a deixar links para as mais banais.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.